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Um encontro que deveria selar a reaproximação diplomática entre Estados Unidos e África do Sul transformou-se em um espetáculo tenso na Casa Branca. O presidente Donald Trump interrompeu os procedimentos para exibir um vídeo de um líder sul-africano gritando “Matem os Bôeres”, um slogan histórico contra fazendeiros africâneres, como “evidência” de um “genocídio” contra os brancos na África do Sul.
Com o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa ao seu lado e diante das câmeras, Trump insistiu que fazendeiros brancos estão sendo mortos e desapropriados de suas terras. A cena, que ultrapassou as formas usuais da diplomacia, deixou pouco espaço para Ramaphosa intervir. “Vamos falar sobre isso com calma”, pediu o líder sul-africano, apelando ao legado de Nelson Mandela e ao diálogo como ferramenta para resolução de conflitos. Mas a pauta já estava definida por Trump.
Narrativa de Vítima e Tensões Crescentes
As acusações do presidente dos EUA se inserem em um contexto político mais amplo. Desde seu retorno ao cenário internacional, Trump tem buscado restabelecer uma narrativa na qual os brancos são vítimas de políticas discriminatórias. Essa estratégia, eficaz na consolidação de seu eleitorado, não é nova: durante seu primeiro mandato, ele já havia criticado duramente as políticas de empoderamento negro na África do Sul, suspendido a ajuda financeira ao país e aceitado dezenas de africâneres como refugiados políticos.
Desta vez, porém, o impacto foi maior. A reunião acontece em um momento de particular tensão nas relações bilaterais. Às acusações de genocídio soma-se a rejeição dos EUA à posição da África do Sul sobre o conflito em Gaza. O governo Ramaphosa acusou formalmente Israel perante o Tribunal Internacional de Justiça, o que enfureceu Washington e consolidou ainda mais a divisão. Além disso, persistem suspeitas sobre os laços da África do Sul com o Irã, alimentadas em parte pelo passado empresarial de Ramaphosa na MTN, a gigante das telecomunicações com investimentos em Teerã.
Questão Fundiária e o Papel de Elon Musk
O cerne da controvérsia gira em torno da questão fundiária. A lei de desapropriação sem indenização, promulgada este ano, permite a retomada de terras detidas pela minoria branca como último recurso – minoria essa que ainda controla a maioria das propriedades agrícolas do país. Enquanto o governo sul-africano afirma que nenhuma terra foi desapropriada e que não há uma campanha sistemática contra fazendeiros brancos, a narrativa oposta ganhou força, impulsionada por setores conservadores e amplificada por figuras como Elon Musk.
Musk, nascido em Pretória, capital sul-africana, também estava presente no encontro com Trump. Ele há muito tempo acusa o governo sul-africano de implementar leis “abertamente racistas” que, segundo ele, impedem sua empresa, a Starlink, de operar no país. A legislação local exige que 30% das ações de empresas estrangeiras no setor de telecomunicações sejam detidas por pessoas negras ou outros grupos historicamente desfavorecidos – uma política que Pretória considera essencial para corrigir décadas de desigualdade estrutural herdada do apartheid.
Essa perspectiva, no entanto, colide com a visão promovida pelo trumpismo. Para seus defensores, essas leis não são ferramentas de justiça social, mas instrumentos de vingança racial. Assim, a África do Sul se torna um caso paradigmático de uma suposta reversão da ordem global, onde, segundo essa lógica, os brancos seriam as novas vítimas. Essa narrativa explica a ênfase de Trump em um “genocídio” que não é sustentado pelos dados disponíveis. Os assassinatos de fazendeiros, embora reais e frequentemente violentos, não seguem um padrão racial ou um plano sistemático. Segundo analistas e autoridades locais, eles fazem parte de um clima generalizado de insegurança que afeta todas as comunidades do país.
Ramaphosa tentou desmascarar diplomaticamente essa narrativa: “Se houvesse um genocídio contra os africâneres, essas pessoas não estariam aqui, incluindo meu Ministro da Agricultura”, disse ele, apontando para os membros brancos de sua delegação. Mas suas palavras pareceram se dissolver no ar diante do ataque da mídia de Trump. Mesmo quando lembrado de que a maioria das vítimas de violência na África do Sul são jovens negros de bairros pobres, Trump respondeu: “Não sei se isso é bom ou ruim, mas os fazendeiros de quem estamos falando não são negros”.
O episódio revela não apenas uma diferença de diagnóstico, mas também um choque de visões sobre história e justiça. Enquanto o governo sul-africano insiste em construir um país mais justo, Trump e seus aliados projetam uma imagem de caos, vingança e perseguição racial. Essa narrativa, embora sem base factual, é funcional em um ano eleitoral.
Por trás do barulho, a tensão continua a crescer. Os Estados Unidos mantêm a ameaça de boicotar a cúpula do G20 que será realizada em novembro na África do Sul. Enquanto isso, nas ruas de Pretória, uma estátua equestre de Louis Botha – uma figura importante do nacionalismo africâner – ainda está de pé em frente ao parlamento multirracial.