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A fome atingiu 19 milhões de brasileiros na pandemia em 2020. É o que mostram os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
Os 19 milhões estão entre as 116,8 milhões de pessoas que conviveram com algum grau de insegurança alimentar no Brasil nos últimos meses do ano, o que corresponde a 55,2% dos domicílios.
A pesquisa foi feita durante os dias 5 e 24 de dezembro em 2.180 domicílios nas cinco regiões do Brasil, questionando os moradores sobre os 3 meses anteriores ao momento da coleta.
A pesquisa foi realizada no momento em que o auxílio emergencial foi diminuído de R$ 600 para R$ 300 e de R$ 1.200 para R$ 600 — quando a pessoa de referência era uma mãe solo —, afetando a renda de milhões de beneficiários.
Simone Aparecida da Silva, 35, participou das rodadas de R$ 1.200 e R$ 600. Moradora de Heliópolis, em São Paulo, ela é mãe de oito filhos e está grávida do nono. Três deles, porém, vivem em um abrigo.
O valor que Simone recebeu do governo permitiu que saísse da casa da mãe e comesse com mais qualidade. Quando ganhou a quantia menor, conseguiu pagar o aluguel, mas dependeu de doações para se alimentar. Sem auxílio, em poucos meses, teve que voltar.
As contas da casa se resumem ao aluguel de R$ 600. A renda vem dos bicos da mãe, que somam R$ 400, e de seu Bolsa Família e da irmã, que são de R$ 342 e R$ 259, respectivamente.
A principal medida do governo para diminuir o impacto da pandemia não foi suficiente. Entre os domicílios que receberam o Auxílio Emergencial, 28% viveram insegurança alimentar grave — ou seja, passaram fome — ou moderada e 37,6% viveram de forma leve. Já entre os que não receberam, 10,2% passaram por insegurança grave ou moderada, e a maior parte deles, 60,3% viveram em segurança alimentar.
Uma nova rodada do auxílio emergencial foi aprovada e começa a ser paga nesta semana. Os valores variam entre R$ 150 e R$ 375. Simone deve receber o maior benefício. Com a alta do preço dos alimentos e os gastos para manter uma residência, não há outra alternativa a não ser buscar ajuda.
A fome atingiu 11,1% das casas chefiadas por mulheres. Quando o domicílio em que a pessoa de referência é um homem, esse número cai para 7,7%. A diferença na segurança alimentar entre os gêneros é consideravelmente maior: quando se trata de uma mãe solo, 35,9% das famílias têm a alimentação garantida, já no caso dos homens são mais que a metade, 52,5%.
Quando a pessoa de referência é negra, a fome está presente em 10,7% das casas, enquanto se ela é branca, 7,5%.
O Norte e o Nordeste concentram menos domicílios com acesso pleno a alimentos. No Norte, 18,1% das famílias passavam fome, enquanto 13,8% no Nordeste. Em comparação com a macrorregião Sul e Sudeste, agrupadas na pesquisa, a fome atingiu 6%. No Centro-Oeste, foram 6,9%.
Débora Aguiar, 27, vive essa realidade. Moradora do Ibura, na periferia de Recife, em Pernambuco, ela vive a insegurança alimentar desde o início da pandemia. Mãe de duas meninas, é casada com Renato Isaías, 24, com quem divide as contas.
Ambos sem emprego, não sabem como pagar o aluguel, de R$ 400. A única certeza que tiveram foi quando receberam o auxílio emergencial. Para comer, contam com a rede de apoio que construíram na própria favela. “O que tem dado sustento para as famílias, são as outras famílias da favela. É uma que divide o feijão, outra que divide o charque”, conta Débora.
Sem a possibilidade de comprar, também começou a plantar. Mas as refeições se baseiam no que há de mais barato. “A gente tem vivido um processo de substituição. A mortadela e a linguiça viraram a carne”, afirma.
A prioridade para Maria de Lourdes Laurindo, 54, agricultora assentada pela reforma agrária no assentamento 25 de julho, em Casserengue, na Paraíba, é o alimento.
Mas a pandemia tirou a possibilidade dos agricultores locais venderem seu plantio na Feira da Agroecologia, sua única fonte de renda. Por plantar, ter galinheiro e uma cabra leiteira, Lourdes e seu marido vivem uma insegurança alimentar leve.
A fome alcançou 12% dos domicílios rurais, contra 8,5% na área urbana. Lourdes vive em uma região semi-árida e com pouca disponibilidade de água, dependendo de cisternas.
No campo, os domicílios atingidos pela fome dobram de 21,1% para 44,2% quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos.
A pesquisa mostra o aumento da fome no Brasil aos níveis observados em 2004, na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), quando a insegurança alimentar moderada estava em 12% e a grave em 9,5%. Na pesquisa atual, os dados mostram o primeiro quesito em 11,5%, e o segundo em 9%.
É o pior índice desde então. Em 2004, o país tinha 64,8% da população em segurança alimentar, hoje tem 44,8%. Até 2013, pesquisas mostravam regressão da fome no país. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 do IBGE, no entanto, evidenciou o aumento da insegurança alimentar. Hoje, é ainda maior.