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Após oito semanas de julgamento, Gisèle Pelicot se sente “ferida e questionada”. A mulher que sofreu dezenas de violências sexuais orquestradas por seu ex-marido subiu novamente ao tribunal nesta quarta-feira, em um novo dia aberto ao público, pois “não tinha nada do que me envergonhar”, afirma. As agressões foram gravadas e registradas como “abusos” pelo acusado principal, Dominique Pelicot, que reconheceu os fatos. “Sofri centenas de violações e foi difícil tomar a decisão de divulgar esses vídeos. Mas isso também permitiu conhecer a verdade.”
A septuagenária aproveitou a ocasião para se dirigir ao ex-marido, sem conseguir olhar para ele devido à “carga emocional” que esse gesto representa. “Tivemos cinquenta anos de vida em comum, fui uma mulher feliz e realizada. Tivemos três filhos e sete netos”, recordou diante do tribunal. Para ela, Pelicot era “um homem gentil e afetuoso” do qual nunca duvidou. Por isso, apesar de ter se preparado durante quatro anos para esse processo judicial, ainda não compreende o que o levou a agir daquela forma por quase uma década.
“Estou tentando entender como esse homem, que era para mim o homem perfeito, pode ter chegado a isso. Como pôde me trair até esse ponto? Como você pôde trazer indivíduos para o meu quarto?”, questionou. “Vou ter que me reconstruir: estou totalmente destroçada. (…) Não sei se minha vida será suficiente para entender isso.”
“Eu também tinha um homem excepcional”
Gisèle também se dirigiu “às mulheres, mães, irmãs” dos acusados, que testemunharam em audiências anteriores e defenderam que os envolvidos eram “homens excepcionais”. “Eu tinha o mesmo em casa”, lembrou. “O estuprador não é aquele que encontramos em um estacionamento à noite. Ele também pode estar em nossa família, entre nossos amigos”, afirmou.
“O senhor Pelicot cozinhava muito. Eu o via como alguém carinhoso e atencioso”, contou a mulher. Esse gesto que ela considerava amoroso foi crucial para que as violações ocorressem: Dominique Pelicot misturava em suas comidas e bebidas uma série de ansiolíticos e sedativos que deixavam Gisèle em um estado próximo ao coma. “Eu descobri que havia sido estuprada no meio do dia e isso me fez duvidar. Estava tomando café da manhã na cozinha, com um suco de laranja, mel, geleia, torradas, café… Ele poderia muito bem ter colocado isso no meu suco de laranja ou no meu café”, comentou.
Diante das perguntas do presidente do tribunal, Gisèle considerou a possibilidade de que seu ex-marido agisse por vingança por sua recusa em participar de trocas de casais ou, até mesmo, por uma traição passada. “Me senti responsável por essa parte da vingança dele”, admitiu, “mas é algo que discutimos muito. Ele também teve amantes. Dizíamos: ‘O que importa é o hoje, que estamos juntos’.”
“Hoje não me sinto responsável por nada”
No entanto, Gisèle assegurou que, atualmente, não se sente culpada. “Fui uma vítima. Mas as vítimas têm dificuldade em lidar com isso, há culpa”, admitiu. O comportamento da defesa influenciou isso, lembrou a mulher. “Disseram que eu era cúmplice e que consenti. Até tentaram dizer que eu era alcoólatra. É preciso ser forte para comparecer a este tribunal penal”, observou.
Nesse sentido, destacou uma das perguntas dos advogados que a “doeu profundamente”. O advogado da defesa pediu que ela dissesse em que momento se sentiu estuprada. “Foi durante a felação ou depois da penetração?”, perguntou. “Tive a impressão de que estávamos trocando uma receita de cozinha”, assegurou a septuagenária, que considera a pergunta “insultante”.
“Não é coragem, é vontade e determinação”
Gisèle Pelicot espera que este julgamento sirva para fortalecer outras vítimas de estupro. “Que pensem: se a senhora Pelicot pôde, eu também posso”, enfatizou. Mas ela não se considera uma pessoa corajosa, como muitos lhe apontaram ao longo das oito semanas de julgamento. “Não é coragem, é vontade e determinação de fazer essa sociedade avançar”, precisou. “É por isso que venho todos os dias. Acompanho os debates de perto, ouço coisas inauditas. Mas todo homem tem direito a uma defesa”, considerou.
“E eu aguento por todas essas mulheres e homens que estão atrás de mim hoje. Todas essas mulheres e homens vítimas de estupro nesta sociedade”, concluiu.