Cirurgião francês que abusou de centenas de crianças não pede “clemência” em julgamento

Um cirurgião francês que abusou sexualmente de centenas de pacientes durante duas décadas, a maioria crianças, afirmou nesta segunda-feira (26) que não pedia “clemência” ao tribunal, enquanto seu julgamento de três meses se aproxima do veredito.

Joel Le Scouarnec, de 74 anos, admitiu ter agredido sexualmente ou estuprado 299 pacientes (256 deles menores de 15 anos) em hospitais no oeste da França entre 1989 e 2014. Muitos dos abusos ocorreram enquanto as vítimas estavam sob anestesia ou se recuperando de operações.

A promotoria solicitou na sexta-feira a pena máxima de 20 anos para o ex-cirurgião e também fez a exigência incomum de que ele seja mantido em um centro para tratamento e supervisão mesmo após sua soltura.

“Não peço clemência ao tribunal”, declarou Le Scouarnec em sua alegação final. “Simplesmente, concedam-me o direito de ser uma pessoa melhor”, acrescentou. O veredito do tribunal de Vannes, na região da Bretanha, é esperado para quarta-feira.

“O diabo se veste de jaleco branco”

“Você era o diabo e às vezes ele se veste de jaleco branco”, disse o promotor Stéphane Kellenberger a Le Scouarnec na sexta-feira, adicionando que um julgamento adicional poderia ser necessário para cobrir os casos de mais vítimas cujos abusos não fazem parte do processo atual.

Le Scouarnec é acusado neste julgamento de 111 estupros e 189 agressões sexuais, e deve emergir esta semana como um dos predadores sexuais condenados mais prolíficos da história da França.

Sua equipe de defesa afirmou que não estava questionando as acusações nem a solicitação de sentença da promotoria, mas insistiu que suas expressões de arrependimento às vítimas eram genuínas, apesar de muitos não acreditarem nele.

“Joel Le Scouarnec não pede para escapar da pena solicitada pelo promotor”, afirmou um dos advogados, Maxime Tessier. O advogado pediu ao tribunal que levasse em conta o caráter “excepcional” da confissão de Le Scouarnec, que admitiu todas as acusações contra ele em março. “Joel Le Scouarnec nunca culpou ninguém, sempre disse: ‘Eu sou o único culpado, eu sou o único responsável’”, afirmou Tessier. “O tribunal deve estar convencido da sinceridade de Joel Le Scouarnec.”

Apesar de ter admitido a responsabilidade, o cirurgião também disse repetidamente que não se lembrava de seus atos. Ele repetiu suas desculpas quase mecanicamente durante as semanas do julgamento, às vezes palavra por palavra e com voz monótona.

“Às vezes é preciso enfrentar duras realidades, e espero que o tribunal não ignore essa realidade de perversão claríssima, que apresenta um risco de perigo extremamente grave”, disse Marie Grimaud, advogada que representa dezenas de vítimas.

Falha das autoridades e indignação das vítimas

Os meses de audiências foram marcados pelo horror dos atos do ex-cirurgião – que confessou os abusos – mas também pela frustração com a falha das autoridades médicas e judiciais em agir antes. Le Scouarnec exerceu a profissão por décadas até sua aposentadoria em 2017, apesar de uma condenação em 2005 por posse de imagens de abuso sexual infantil.

Ele já está preso, após ter sido condenado em dezembro de 2020 a 15 anos de prisão por estuprar e agredir sexualmente quatro crianças, incluindo duas de suas sobrinhas.

Algumas das partes no processo expressaram frustração porque o caso não teve na França o impacto esperado na mídia e na política. O caso não recebeu o mesmo nível de atenção que o de Dominique Pelicot, que foi preso no ano passado por recrutar dezenas de desconhecidos para estuprar sua agora ex-esposa, Gisele.

No início deste mês, cerca de vinte vítimas de Le Scouarnec e seus familiares organizaram um protesto em frente ao tribunal pelo “silêncio do mundo político”. Eles exigiram “uma comissão interministerial” para “aprender as lições” do caso Le Scouarnec e evitar que fatos semelhantes se repitam.

“Estamos consternados ao ver que este ‘julgamento do século’ não é um acontecimento decisivo aos olhos do governo e, mais amplamente, do público em geral”, disse o grupo. “Eles tentam apresentá-lo como um monstro, mas este monstro é a sociedade que o criou e permitiu que persistisse”, disse Manon Lemoine, hoje com 36 anos, uma das vítimas que Le Scouarnec admite ter estuprado quando ela tinha 11 anos. Ela disse que se Le Scouarnec não for condenado à prisão vigiada mesmo após sua soltura, seria uma “vergonha”. “Os especialistas explicaram que ele continua perigoso”, acrescentou.