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Ela nem era assim exatamente “esquerdista”: mas tinha muitos amigos da faculdade que eram, era simpatizante de muitas causas abraçadas pela esquerda e tinha até ido à manifestações na época da eleição, contra o candidato da direita, que ela considerava um horror.
Tinha sido a única da família a votar no candidato da esquerda.
Uma amiga mostrou o aplicativo de namoro para esquerdistas, ela achou engraçado, começou a ver alguns perfis e acabou se cadastrando. Logo no primeiro dia, encantou-se com um rapaz de coque no cabelo e que usava uma foto bonita no perfil, com flores na barba. Ele gostava de música, tocava flauta e escrevia poesia.
Muito despachada e objetiva como sempre fora, marcou logo de se encontrar com ele; sugeriu um bar, mas ele preferiu a feirinha de artesanato, onde aconteceria uma ciranda pela paz mundial. Ela achou esquisito, mas topou.
Chegando lá, ao encontra-lo foi em sua direção na intenção de abraçá-lo; mas ele recuou e fez sinal com as mãos pedindo que ela parasse.
— Antes de mais nada, eu quero te pedir desculpas – disse ele.
— Ué. Desculpas pelo quê? – perguntou ela.
— Quero te pedir desculpas por ser homem.
— Oi?
— Quero pedir desculpas por milhares de anos de opressão da nossa sociedade patriarcal, pela violência, pelos estupros, pela discriminação.
— Hein?
— Quero te assegurar que reconheci e desconstruí todo machismo que havia em mim.
— Hã?
— Ainda assim digo que, caso você não queira minha amizade pelo fato de eu ter nascido nessa condição de estereótipo do cis-heteropatriarcado, eu vou entender.
Ela olhou de cima a baixo para o magrelinho com tranças na barba, vestindo uma medonha camisa florida e calçando chinelos de lona.
E riu.
Riu muito, riu tanto que se sentou na calçada. Gargalhou até quase perder o fôlego, pensando que, assim que conseguisse parar, a primeira coisa que faria seria desinstalar aquela porcaria do celular; e a segunda seria ir correndo contar pra amiga esquerdista aquela sua experiência romântica.
Algum tempo se passou. Ela, casou-se com um pecuarista de Goiás e está grávida de gêmeos. De vez em quando lembra daquele dia e ainda acha graça. Ele, segue na faculdade de ciências sociais e ainda mora com a mãe e os gatos Teobaldo e Genésio. Mas desde aquele dia está fazendo análise.
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Conheceram-se pelo aplicativo e logo se apaixonaram: eram ambos entusiastas da sustentabilidade, nutriam as mesmas preocupações com o futuro do planeta diante da iminente catástrofe causada pelo aquecimento global e eram ambos veganos.
Demoraram um pouco para marcar um encontro porque queriam que fosse muito especial: combinaram que a primeira refeição que fariam juntos seria preparada com vegetais que eles mesmos plantariam e colheriam. Ele preparou um canteiro com todo carinho. Ela chegou trazendo sementes.
Semearam a terra entoando mantras e depois se sentaram um de frente para o outro para meditar: e prometeram que só se alimentariam quando a Mãe Terra lhes provesse o alimento.
Dois meses depois os vizinhos se incomodaram com o mau cheiro e chamaram a polícia. O carro funerário chegou logo em seguida.
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Trocaram mensagens pelo aplicativo, mas não rolou uma paixão à primeira vista; bem pelo contrário, tinham muitas diferenças: ele era eleitor do Ciro e ela, do Boulos.
Mas um dia ele insistiu e ela topou. Ele a levou a um restaurante caro e ela já foi logo dizendo que achava aquilo um ato de ostentação burguesa – mas, na verdade, adorou. Ele pediu vinho e ela não disfarçou a cara de irritação quando o maître serviu a ele primeiro para que provasse:
— Tradição machista horrenda – balbuciou.
Mas o papo entre os dois fluiu pelas próximas horas, entre a entrada, o prato principal, mais uma garrafa de vinho e depois mais uma, antes da sobremesa.
Ela já havia deixado de lado seus discursos sobre a mais-valia, sobre a exploração do proletariado e sobre como todos seriam mais felizes se a burguesia fosse metralhada e os meios de produção entregues aos trabalhadores. Ele era só gracejos, contava piadas sobre economistas liberais e a todo momento tocava nela por baixo da mesa.
Até que, como restaurante já ia fechar, sem que eles pedissem, o garçom trouxe a conta.
Diante da quantia exorbitante impressa no papel, ele se transfigurou, ficou vermelho, com os olhos esbugalhados; subiu na mesa e começou a discursar coisas desconexas, ligando o rentismo internacional à necessidade do governo limitar os lucros dos empresários e emitir mais moeda para melhorar o poder aquisitivo dos mais pobres.
Ela, aproveitou-se da confusão, foi até a rua, conseguiu alguns pneus e pedaços de madeira e fez uma barricada em chamas à frente do estabelecimento; depois chamou uns mendigos que estavam dormindo na esquina, armou uma barraca de plástico preto bem no meio do salão e decretou que agora aquele restaurante pertencia aos trabalhadores.
A polícia foi chamada.
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Conheceram-se pelo aplicativo e a identificação foi instantânea. Dividiam os mesmos interesses, gostavam das mesmas coisas, tinham opiniões parecidas a respeito de quase todos os temas. E, também em comum, tinham algo realmente relevante: ambos já bem passados dos quarenta, tinham muito recentemente se assumido como homossexuais; descobriram que tinham saído do armário na mesma época.
Contudo, algo de estranho havia na relação: nenhum dos dois propunha um encontro; limitavam-se a conversar pela internet, trocar fotos, enviar vídeos.
— Ele deve ser tímido – pensava um.
— Vai ver ele não se assumiu realmente – pensava o outro.
Um dia, porém, um deles se encheu de coragem e tocou no assunto; o outro também se abriu e tiveram, ambos, a apavorante revelação – eles tinham mais uma coisa em comum:
um, ex-secretário de obras e ex-prefeito, Complexo Penitenciário da Papuda, 11 anos por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha; outro, ex-deputado, Colônia Penal Agrícola de Piraquara, 14 anos por sonegação, ocultação de patrimônio, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Era um amor impossível.
Ambos caíram em depressão.
Mas todas as noites, em segredo, rezam para que o próximo pedido de habeas corpus caia nas mãos do Gilmar Mendes.