Nas ruas gélidas e cobertas de neve de Leningrado, famílias carregavam parentes mortos – quase mumificados pelas brutais temperaturas de -43°C – escadas abaixo de prédios escuros e decadentes. Alguns percebiam o quão leves estavam esses corpos, devastados pela fome, enquanto os colocavam em trenós e os arrastavam pelas ruas como sacos de lixo até pontos de coleta em massa.

Vladimir Putin ainda criança no colo de sua mãe Maria Shelomovam e de sua avó
Os coveiros, famintos e enfraquecidos, não tinham força para cavar o solo congelado do inverno. Máquinas escavadoras abriam enormes fossas, abrigo para milhares de cadáveres anônimos. Em poucas semanas, tantas foram as mortes na cidade que os mortos precisavam esperar em fila para serem enterrados, seus corpos empilhados como toras de madeira.
Entre esses corpos estava o de uma mulher bonita e digna, na casa dos 30 anos. Presumia-se que ela, como tantos outros, havia morrido de inanição. Seu nome era Maria Ivanovna Shelomova Putina – a mãe de Vladimir Putin.

Maria Shelomova 17 de outubro de 1911 – 6 de julho de 1998
No entanto, segundo um relato, naquela rua silenciosa de altos prédios residenciais do século XIX, sob um céu índigo escuro, vizinhos ouviram um gemido quase imperceptível vindo do meio dos mortos. Um par de sapatos, que despontava da pilha de corpos inertes, foi visto se mexendo. Milagrosamente, após sobreviver por meses com rações mínimas, a mãe de Putin não estava morta. Os vizinhos a resgataram dos corpos ao redor.

Putin aos cinco anos com sua mãe Maria Ivanovna

Com seu marido, Vladimir Spiridonovich (na foto), lutando com o Exército Vermelho fora da cidade, que eventualmente sofreu ferimentos de uma explosão de granada nas pernas, Maria Putina foi uma dessas mães que teve seu filho removido. Na foto: Vladimir Spiridonovich Putin 23 de fevereiro de 1911 – 2 de agosto de 1999
Maria Putina foi uma das sortudas. Estima-se que 1,5 milhão de soldados e civis morreram no inferno apocalíptico que foi o Cerco de Leningrado – o bloqueio mais mortal da história. Esse cerco da Segunda Guerra Mundial, que durou cerca de 900 dias, entre 1941 e 1944, mostrou a resiliência da humanidade diante dos extremos mais sombrios de necessidade e sofrimento.

Este cerco da Segunda Guerra Mundial, que durou cerca de 900 dias, de 1941 a 1944, ilustrou a resiliência da humanidade diante dos extremos mais sombrios de privação e sofrimento. Para muitos dentro da cidade – incluindo os Putins –, ele transformou sua compreensão da própria natureza humana. E, de certa forma, o espectro desse sofrimento ainda projeta sua sombra sobre a Rússia e o mundo até hoje.
Para muitos dentro da cidade – incluindo os Putins –, o episódio transformou sua compreensão da própria natureza humana. E, de certa forma, o espectro desse sofrimento ainda projeta sua sombra sobre a Rússia e o mundo até hoje. Basta olhar para os cenários de pesadelo da guerra na Ucrânia, onde tropas lutam até a morte por cada centímetro de território, e a escala do sofrimento que Putin e suas forças infligiram à população civil.
O Início do Pesadelo
O calvário de Leningrado começou semanas após a invasão da Rússia pelas forças de Hitler no verão de 1941. Enquanto os três milhões de soldados da Operação Barbarossa avançavam pelas estepes do leste europeu – queimando, mutilando e massacrando tudo pelo caminho –, centenas de milhares de soldados alemães do Grupo de Exércitos Norte cercaram a orgulhosa e bela cidade que hoje conhecemos novamente como São Petersburgo.
Fundada em 1703 por ordem do czar Pedro, o Grande, que a ergueu em pântanos congelados na ponta do Mar Báltico, São Petersburgo – com seus palácios barrocos coloridos, igrejas de cúpulas douradas e canais sinuosos – foi concebida como a “janela da Rússia para o Ocidente”. A cidade logo se tornou famosa por seu balé, poesia rica e música requintada.
Isso continuou mesmo após a revolução russa de 1917, quando foi rebatizada como Leningrado. E até durante o terror dos expurgos de Stalin nos anos 1930 – quando milhares de inocentes foram arrancados de suas casas no meio da noite e enviados a campos de trabalho forçado ou simplesmente assassinados –, havia, incrivelmente, uma comédia vibrante. Os pais de Vladimir Putin, aliás, gostavam de ir ao teatro no final dos anos 1930 para ver o adorado comediante Arkady Raikin, o único homem na Rússia com aparente permissão para zombar das autoridades soviéticas.

Vladimir Putin, à direita, posa para uma fotografia com seus pais Maria e Vladimir Putin em 1985
A Decisão de Hitler
Durante a Segunda Guerra Mundial, Leningrado também era um dos centros da vasta indústria de armamentos da União Soviética: tanques e aviões eram montados em imensas “catedrais” industriais. Hitler inicialmente planejou conquistar a cidade, mas depois decidiu que seria melhor apagá-la – junto com seu povo – do mapa.
Os ocupantes da Wehrmacht cortaram todas as rotas de suprimento – estradas e ferrovias –, isolando-a do resto da Rússia. Todas as noites, a Luftwaffe lançava ataques aéreos devastadores que destruíam prédios e fábricas, deixando os cidadãos exaustos e desorientados.
Em setembro de 1941, um bombardeio destruiu os enormes depósitos de madeira que armazenavam os estoques de alimentos não perecíveis da cidade: massas, lentilhas, açúcar. A partir daí, a fome tomou conta.
O Inverno da Fome
Aquele inverno de inanição – ainda hoje lembrado em grandes cerimônias na cidade e por Vladimir Putin – permanece quase incompreensível. Em dezembro de 1941, as rações diárias eram reduzidas a um punhado de pão preto pesado para trabalhadores das fábricas, e ainda menos para os demais. Com o passar das semanas, essas porções encolhiam ao tamanho de uma carta de baralho para um dia inteiro.
Para garantir essa mísera ração, os cidadãos começavam a fazer fila nas padarias às 4h30 da manhã, em longas filas que serpenteavam pelas ruas. Rumores de carne de cavalo no mercado negro desencadeavam brigas desesperadas. Famílias que antes se amavam, em apartamentos comunais, tornavam-se inimigas, gritando e xingando umas às outras.
Crianças pequenas vasculhavam entre as tábuas do chão em busca de grãos secos caídos. Pais e filhos suspeitavam uns dos outros de roubar comida. Quando as nevascas chegaram e os nazistas bombardearam as usinas elétricas, a cidade mergulhou em uma escuridão intermitente. Móveis e corrimãos foram quebrados para servir de lenha.
Transformações Físicas e Mentais
A fome trouxe mudanças mentais e físicas impressionantes. Apesar da desnutrição, barrigas inchavam (um edema causado pela incapacidade do corpo de processar líquidos). A pele escurecia em manchas, como se o sangue estivesse lento demais para circular. Alguns ficavam amarelos, outros roxos ou até verdes. Gengivas recuavam e sangravam, olhos pareciam crescer, e muitos relatavam sentir “formigas” sob a pele – o corpo começando a se consumir.
Mães com bebês sofriam por não produzir leite; uma chegou a cortar o braço para que o filho chupasse seu sangue. Com os pais lutando na guerra e mães trabalhando em fábricas, muitas crianças foram entregues às autoridades. Maria Putina, cujo marido Vladimir Spiridonovich lutava no Exército Vermelho e foi ferido por uma granada, perdeu seu filho Viktor, que morreu de difteria em 1942, aos dois anos, em um orfanato estatal.
A Estrada da Vida e a Resistência
Apesar do horror, o cerco revelou a capacidade humana de inventar. O Lago Ladoga, próximo à cidade, congelou tanto que caminhões cruzaram o gelo, trazendo suprimentos e evacuando pessoas pela “Estrada da Vida”. Na primavera, contra-ataques do Exército Vermelho restauraram algumas rotas, e em 1942 a Filarmônica de Leningrado apresentou a Sétima Sinfonia de Shostakovich, um ato de resistência que ecoou pelo mundo.
O cerco terminou em janeiro de 1944, com um milhão de civis mortos. Em 1952, Maria e Vladimir Putin tiveram outro filho, Vladimir Jr., nascido em uma cidade marcada por valas comuns. Anos depois, em uma cerimônia, Putin falou da mãe “deitada entre os corpos” e do irmão que nunca conheceu.
O Legado
O que esse passado explica sobre Putin? O cerco moldou uma paranoia em sua visão de mundo, mas milhões de sobreviventes não se tornaram líderes beligerantes. Estudos mostram que muitos “Blokadniki” desenvolveram empatia acima da média. Ainda assim, fica a questão: como alguém que conhece tão bem o sofrimento da guerra pôde infligir tanto horror na Ucrânia?